segunda-feira, 12 de julho de 2010

Dançando

O que é dançar? A primeira vista pode parecer uma pergunta óbvia e longe do que até agora foram os temas que nortearam este blog, mas se analisarmos mais aprofundadamente e com um certo enfoque, perceberemos a importância que esta discussão, aparentemente esteta e trivial, tem para a crítica.

Em primeiro lugar, devemos atentar para o que todas as danças têm em comum. Antes de mais nada, vale algumas ressalvas. Procuraremos abordar aqui as danças tidas como ocidentais ou latinas, o que nos preservará de consultar e ter atenção com etnografias, ao menos no sentido clássico, ou seja, as sociedades "exóticas" ou estrangeiras. Ainda assim, se pensarmos com Geertz e o seu "outro", ainda estamos de certa forma em um domínio da antropologia. Sendo assim, nos prenderemos, em parte devido a razões arbitrárias como o conhecimento por parte do autor, a três danças, entendidas em um contexto cultural da classe média paulistana; são elas o techno, os shows de metal e o forró universitário. Também devemos alertar para o fato de que este artigo é amador e não é baseado em uma pesquisa inédita, o que significa que não está escrito em cima de dados empíricos recolhidos com rigor metodológico nem com ferramentas analítico-interpretativas epistemologicamente refletidas (nem bibliografia tem!). É só um artigo.

Voltando à nossa primeira reflexão, todas as danças que tomamos como objeto deste artigo têm em comum pelo menos dois fatos: são dançadas em grandes grupos de pessoas ao som de música. Se ampliarmos o nosso enfoque objetivo e pensarmos em outras danças "ocidentais-latinas" como a dança de salão, o samba ou o Zouk, esta definição ainda se aplica. Porém, se observarmos a Dança do Ventre, esta definição não será verdadeira. Para superarmos este problema, danças como a Dança do Ventre são performances para um público e não danças no sentido estrito que estamos estipulando aqui. É verdade que todas as danças que serão analisadas têm suas vertentes performáticas, mas analisaremos as danças enquanto danças, ou seja, quando não dançadas visando uma performance, em outras palavras, quando o executante não dança para um público que o entende como um performante.

Passemos agora a uma análise em separado do que as danças-objeto têm em comum. Em primeiro lugar, são dançadas em eventos sociais, ou seja, todas as danças que tomamos por objeto são dançadas em ambientes em que muitas pessoas também estão dançando. Mas, ainda no quesito "coletividade", os nossos objetos têm grandes diferenças. O techno não é dançado em conjunto; dança-se individualmente em meio a muitos outros dançarinos individuais. É verdade que existem certas coreografias realizadas em conjunto, porém na imensa maioria do tempo o techno é dançado sozinho. No forró universitário, não é possível executar nenhuma coreografia sozinho. É preciso um par, necessariamente. Ainda assim, são poucas ou muito raras (podemos tomar como exceções) as coreografias que são executadas em trio ou em mais pessoas (a quadrilha está fora, portanto). Parece estranho entender um show de metal a primeira vista como um evento onde se dança, mas observemos que existe um ato corporal rítmico em um ambiente com música e muitas pessoas que também executam este mesmo ato rítmico. Com relação a coletividade do headbanger, o balançar de cabeças é essencialmente individual. Mas, se prestarmos atenção aos vários gêneros de mosh (existem diversas modalidades, como o stage diving em que se pula em cima de um mar de pessoas ou como o circle pit , onde os participantes se batem de maneira regulada, geralmente com brigas simuladas ou com cotoveladas aleatórias), são necessários outros dançarinos para a execução destas coreografias, muito comuns e até mesmo esperadas em eventos de Rock pesado, o que situaria esta dança-tipo em meio termo em uma escala de coletividade entre o techno e o forró. Mas essa colocação é precipitada. Se analisarmos por outro ângulo, temos no forró casais individuais dançando. Apenas nos shows de rock pesado temos grandes grupos, que muitas vezes incluem todo o evento, em uma única coreografia que é necessariamente executada em conjunto. De forma análoga porém diversa, nos eventos com música eletrônica (pensemos no que muitas pessoas chamam de balada putz-putz) algumas vezes uma única coreografia é executada por um grande grupo que pode incluir boa parte dos participantes do evento. Mas esta coreografia é individual, ela é apenas repetida por vários dançarinos, diferentemente dos grandes circle pit que por vezes cobrem todo um show (aqueles que já foram em show de bandas como Slayer ou Sepultura entendem o que direi) em que todos os participantes são necessários para as brigas simuladas, ou com quem se brigará? Pois os golpes desferidos na maioria dos casos aleatoriamente visam como que acertar a todos. É por isso que eles não miram outro participante em particular, tal como os rodopios do forró, seu homólogo inverso.

Com relação a música, outro traço em comum de todas danças tomadas como objeto, podemos observar que ela é escutada por todos os participantes. Em outras palavras, se entendermos a dança em sua dimensão técnica como atos corporais executadas ritmicamente, o ritmo é dado por uma música. Seria escapar muito do enfoque deste artigo pretender uma análise da música, mas antes de mais nada podemos entendê-la como uma mensagem. Estamos aqui estabelecendo uma grosseira clivagem entre música e canção, também pressupondo que toda canção precisa de uma música. A música é portanto entendida independentemente de qualquer letra que, como canção, possa conter. Podemos dizer, em outras palavras, que a mensagem estipulada acima que a música passa vêm apenas de seus componentes instrumentais. Os conhecimentos musicais do autor não permitem que este seja capaz de uma análise precisa ou conceitual da relação que acredito complexa entre dança e música, mas podemos facilmente observar que esta existe observando qualquer dançarino das danças-objeto. Tomando de certa forma como pressuposto (apesar de acreditar que existam muitos autores que abordem este tema), todos os participantes dos eventos em que se dança as danças-objeto norteiam suas coreografias pela música tocada naqueles. Ou seja, se observamos, todos se pautam por uma mensagem em comum. Ainda na questão da técnica, ignoraremos a dança enquanto uma perícia, em outras palavras, seu conteúdo refletido e "estudado" que se reflete nas elaborações de coreografias, apesar de ser também um tema interessante e bom pra pensar. A relação do ritmo com o ritmo da dança é complexa, mas pensemos nas danças-objeto. O tempo dos movimentos do forró é dado pela música assim como o tempo dos movimentos individuais do dançarino de techno. Quando o espectador de um show de rock bangueia (do inglês balançar, quando balança a cabeça) o ritmo é claramente dado pela música, mas o mesmo não ocorre de maneira tão óbvia durante os moshs. Ainda assim, o momento do mosh, o instante em que ele é realizado, é dado pela música (muitos metaleiros e outros freqüentadores de shows de música pesada argüiriam que os movimentos são executados de acordo com o ritmo da música). Com certeza, as músicas pesadas são pensadas como se fossem um mosh, fato que podemos constatar se percebermos que os moshs costumam ocorrer nos shows daquelas bandas cujas músicas são mais rápidas e, de certa forma, naquelas em que percebemos de certa forma uma textura violenta no ritmo de seus diferentes instrumentos e na relação destes.

E o que podemos concluir de todo o exposto? Se a música é uma mensagem escutada por todos os participantes de um evento social e a dança é pautada em seu ritmo, podemos entender que a dança é uma mensagem em comum repetida várias vezes pelos executantes em uma língua corporal que todos entendem (a técnica da dança, sua perícia). Os dançarinos em um evento social com dança repetem uns para os outros uma mensagem de forma ininterrupta. Com certeza, essa mensagem será texturizada pelas diferentes coreografias, mas o essencial para a compreensão mútua ainda é a mensagem. Não se dança fora do ritmo; é o erro mais primordial que um dançarino pode cometer. A fruição intelectual ( o prazer intelectual do qual Lévi-Strauss fala) da dança reside na tradução de uma mensagem musical, e portanto sonora, em uma linguagem corporal. Mas não é só isso. A dança, como estipulada aqui, é social. Mesmo que a dança seja individual, tal como o techno, ainda sim não se dança sozinho. O coletivo da dança é o ritmo em que todos dançam. O mais importante para que o seu par no forró universitário consiga acompanhá-lo é uma boa compreensão do ritmo e sua posterior tradução em linguagem corporal. De forma análoga, destoa-se da multidão quem não dança no ritmo em uma festa de música eletrônica; sua perícia será desvalorizada. Mesmo que individualmente possa se iniciar um mosh no momento que se quiser em um show de música pesada e que possa desferir os golpes fora do ritmo, o mosh só se tornará realmente amplo quando iniciado no momento certo. Na verdade, e o mais interessante, é que para a violência regulada durante um espetáculo ser um mosh, a música tem que estar tocando; nem se pensa em um mosh fora dessas condições pois são elas que o caracterizam. O vocalista realiza um stage diving durante o solo de guitarra, por motivos técnicos, mas também pois é isso que se espera. A questão não nem tanto o ritmo, mas o que se espera. O ritmo é o esperado na dança de forró, mas além dele existem muitas outras questões que devem ser superadas para o casal dançar. Os dançarinos esperam uma mensagem repetida em comum para se entenderem e isso é dançar. Sem mensagem em comum não há dança. E mais: não é qualquer mensagem, mas uma mensagem determinada. Experimente tocar forró para uma audiência que aguarda um show do Cannibal Corpse. Assim são as sociedades; elas dançam de acordo com uma música; a coreografia dos dançarinos se reproduz enquanto aquela música toca. A relação dos eventos sociais com dança e das sociedades não é bem uma metáfora nesta análise, mas antes uma metonímia, pois tratamos uma parte e, indo para as sociedades, queremos abordar um todo agora. Pois os dançarinos e as pessoas em sociedade são seres humanos em uma coletividade, mas, é claro, de naturezas e formas bem distintas. Ainda assim, existe uma estrutura em comum. As pessoas, que são pessoas pois vivem em sociedade ( a transformação pela cultura, de forma grosseira), vivem de um determinado modo e este modo é comum a elas. Em outras palavras (tentem perceber a metáfora E a metonímia), as pessoas dançam de acordo com uma música. E o mais interessante; quem não vive de um determinado modo não é compreendido, pois está fora do "ritmo" (pensem nos loucos, mas não só neles). Em outro artigo, procurei mostrar que para toda sociedade, entendida no tempo e no espaço, existe um conhecimento tido como legítimo. Este fato é outra expressão do exposto neste artigo. Não podemos tocar a música errada para o público errado. De fato, as sociedades são dinâmicas e as pessoas passam a viver de diferentes maneiras (como sempre nos mostram a história, no tempo, e a antropologia, no espaço), mas se observarmos os dançarinos em um instante, aqueles que dançam de forma diferente destoam; não estão na dança. Este é o destoar das sociedades. Os marginais, os críticos, os "excluídos" estão todos fora do ritmo. O interessante dos eventos com dança é que os dançarinos, ao menos no nosso objeto, não tocam a música, diferentemente das sociedades, em que os próprios dançarinos são os músicos. É dessa forma que juntamos Durkheim, forró, Iron Maiden e Gramsci: perguntado-nos como, dançando e tocando a música de nossa própria dança, podemos fazer todos dançar outro ritmo e sermos compreendidos e aceitos. Eis o trabalho da crítica: falar outra coisa e ainda ser entendida. É bem difícil.



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