Debaterei brevemente sobre a formulação de teorias e a influência das chamadas "descobertas", relacionando, quando possível, com a sua influência na sociedade.
Desde muito, todos acreditam que Pedro Álvares Cabral não descobriu o Brasil em 1500. Apenas uma corrente da historiografia nacional, tida como mais tradicional, admite ainda essa hipótese. Mas a palavra "descoberta" ainda está arraigada em uma concepção ampla de como funciona o processo de alargamento do conhecimento. Esse fato tem um peso especialmente importante quando se trata das sociedades e da vida do homem, de forma mais genérica.
O que é que se entende por "alargamento do conhecimento"? Pressupõe-se, por exemplo, um avanço contínuo em uma escala do conhecimento humano em geral? Admitamos essa vulgata como sendo a mais generalizada no chamado "senso-comum". Antes de mais nada, esse pressuposto passa necessariamente por uma capacidade do homem de apreender plenamente o real. Passando por cima de toda a discussão epistemológica (como o debate entre Kant e Hume) e existencialista (Sartre, por exemplo), mesmo assim, é-se obrigado a aceitar que tal afirmação é, no mínimo, complicada de se confirmar, dado a complexidade do tema por si só. Também devemos levar em conta o modo como este "alargamento do conhecimento" se dá. A sua forma é dada pela história e pela cultura; basta se atentar para os diferentes grupos humanos que foram tidos como os legítimos para tal função na história européia, os filósofos greco-romanos, a Igreja Católica, os acadêmicos e etc. É justamente neste ponto que Kuhn trabalhou seu "Estrutura das Revoluções Científicas"; existe, para toda sociedade e cada tempo, um conhecimento que é tido como legítimo. É fácil de se verificar essa afirmação se observarmos que toda vez que um grupo de legítimos produtores intelectuais suplantou outro na história européia, essa suplantação tratou-se da negação de toda produção intelectual anterior ou sua total reformulação.
Apesar de não o parecer em um primeiro instante, o exposto acima tem grandes conseqüências para a vida cotidiana. A cosmogonia de cada sociedade é o modo como esta como um todo entende a realidade. Assim, a discussão entre o heliocentrismo e o geocentrismo teve importantes conseqüências na sua época na história ocidental, o que, aliás, reforça a tese levantada anteriormente sobre os grupos de produção intelectual tidos como legítimos. Com relação ao conhecimento que o homem tem do homem, a importância desta discussão se torna ainda mais patente. O primeiro tema seria responder a pergunta "o que é o homem?". A antropologia, especialmente com Franz Boas, demonstraria que quase todas as sociedades colocaram nos seus limites o limite da humanidade, fato conhecido como etnocentrismo. Ainda mais: Pierre Clastres mostraria com que dinâmica o etnocentrismo se desenvolveu na sociedade ocidental, mostrando a que conseqüências essa levou. O antropólogo denominou de etnocídio a destruição dos modos de ser de uma sociedade e afirmou que a sociedade ocidental é etnocída por excelência. Para entender essa questão, basta atentar para o fato de que o cristão "ideal" divide o mundo entre fiés e infiés, mas todos são humanos, e é dever todos os "bons cristãos" converter aqueles que não o são. É a discussão de Kuhn com relação aos produtores intelectuais legítimos, mas transposta de seu eixo histórico para um eixo étnico, ou seja, entre sociedades. Aliás, aqui entrevemos o perigo do "correto". Na lingüística, a discussão sobre o "bom português" passa essencialmente por essas idéias e o mesmo se dá na estética, como Lukács mostra. Por fim, Marx em "Ideologia Alemã" cunha, sobre um tema semelhante, a famosa afirmação, de que "as idéias de uma época são as idéias de sua classe dominante".
A discussão pode ainda ser trazida para o debate nacional. A economia, por exemplo, em seu modelo atual encaixa-se na chave interpretativa exposta. No "Capital", Marx faz uma discussão semelhante quando trata do conceito do fetiche, especialmente em relação aos economistas políticos clássicos, como Mill. Para colocarmos essa discussão na contemporaneidade, basta pensarmos em como, para alguns economistas nacionais e em especial Delfim Netto e seus seguidores, os investimentos externos e a exportação se converteram em uma espécie de Santo Graal que a sociedade brasileira deve buscar. As teorias que o afirmam fundamentam-se, é claro, em algum tipo de modelo cartesiano empirista, o que as dá um forte senso de "real". É dessa forma que uma legitimidade social é transubstanciada em uma legitimidade epistemológica. Neste campo, não podemos negá-la. Ainda assim, podemos atentar para o fato de que toda teoria é um conjunto de ênfases sobre o real, conjunto de ênfases escolhido com vistas ao fim para o qual a teoria é formulada, consciente ou insconscientemente, se podemos dizer assim. Fazendo uma analogia com a história da Física, o embate entre o heliocentrismo e o geocentrismo pode ser entendido como o embate entre duas ênfases sobre o real postuladas por dois grupos de produtores intelectuais que rivalizavam no papel de legítimos para a sociedade, dado que cada conjunto de ênfases atendia às diferentes necessidades culturais de classes sociais que disputavam a hegemonia naquela sociedade. Voltando para a questão da economia nacional, as teorias econômicas que dão preponderância para o desenvolvimento, em especial aquele que depende de investimentos estrangeiros e as exportações, atendem às necessidades culturais daqueles industriais e grandes latifundiários que daí tiram seus gordos lucros. Toda classe, para manter seu poder social sobre uma sociedade, deve convencer as outras classes de que são as suas necessidades materiais as necessidades da sociedade como um todo. O confronto entre idéias, que muitas vezes pode parecer meramente intelectual ou acadêmico, pode ser, e o é em muitos casos, um confronto material dentro da sociedade. É por isso que, para entender a dinâmica das idéias, devemos buscar a resposta na realidade material da sociedade.
Mas a sociedade não é uma estrutura rígida imune a transformação. Podemos, de forma grosseira, dividir a vida coletiva do homem em duas esferas: a social, e portanto, material, e a cultural. Discutir em qual das esferas se opera a ação histórica é como discutir se o ovo ou a galinha vieram primeiro; podemos, quem sabe, admitir como sendo contemporâneas as transformações. De qualquer modo, essa discussão escapa ao foco deste artigo. A questão é, dada a discussão exposta até aqui, o que é teoria crítica? Criticar é propor um novo enfoque para a realidade, olhando-a sobre um novo ângulo. Os teóricos críticos atendem às necessidades culturais dos grupos sociais que estão à margem do poder social. É verdade que a própria cultura oferece os caminhos alternativos a ela mesma. Em outras palavras, existem modos estabelecidos pela própria sociedade para se ir contra a sociedade pelos membros desta. Para um exemplo concreto, basta atentarmos para os movimentos contra-culturais, tão caros a juventude, como os punks e outras das chamadas "tribos urbanas". São modos tolerados de se rebelar de maneira organizada contra o status quo. Poderíamos ir além e nos perguntarmos se a própria Universidade não se encaixa aqui. Mas, ainda assim, devemos admitir que existe um peso na discussão cultural e o que o mero fato desta existir já pressupõe em si a presença de uma vitória na luta social. Deste modo que Gramsci concebe o trabalho do crítico e Engels enxerga a necessidade pela da luta pelo sufrágio universal. A revolução se torna, assim, o trabalho de fazer todos que vêem o mundo pela direita enxergarem-no, ao menos uma única vez, a partir da esquerda.
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